sexta-feira, 8 de julho de 2011

Passeio pelas ruas do espinheiro


De: Cida Pedrosa



quero

pelos olhos da cidade

apreciar papoulas

abertas de par em par

para deleite dos cãezinhos

e colares de pérola de maiorca


(a pressa atropela a solidão do homem

que vende pipoca na esquina


o vento do carrro

levanta a saia da moça lilás

para felicidade dos operários

já libertos do andaime

e da rigidez das horas)


quero

pelos olhos da cidade

sentir cheiro de pão e de fuligem

de brisa e de cimento

e testemunhar o preciso instante

em que o beija-flor afaga

a papoula aberta de par em par.


Do livro: Gume — inédito


sábado, 23 de abril de 2011

Pequei, Senhor, mas não porque hei pecado[1]
Da vossa piedade me despido,[2]:
Porque quanto mais tenho delinqüido,
Vos tenho a perdoar mais empenhado.

Se basta a vos irar tanto um pecado,
A abrandar-vos sobeja um só gemido:
Que a mesma culpa que vos há ofendido,
Vos tem para o perdão lisonjeado.

Se uma ovelha perdida e já cobrada[3]
Glória tal e prazer tão repentino
Vos deu, como afirmais na Sacra História:

Eu sou, Senhor, ovelha desgarrada;
Cobrai-me; e não queirais, Pastor Divino,
Perder na vossa ovelha a vossa glória.

(Gregório de Matos)

segunda-feira, 24 de janeiro de 2011

Pastor Amoroso


Quando eu não te tinha
Amava a Natureza como um monge calmo a Cristo...
Agora amo a Natureza
Como um monge calmo à Virgem Maria,
Religiosamente, a meu modo, como dantes,
Mas de outra maneira mais comovida e próxima.
Vejo melhor os rios quando vou contigo
Pelos campos até à beira dos rios;
Sentado a teu lado reparando nas nuvens
Reparo nelas melhor...
Tu não me tiraste a Natureza...
Tu não me mudaste a Natureza...
Trouxeste-me a Natureza para ao pé de mim.
Por tu existires vejo-a melhor, mas a mesma,
Por tu me amares, amo-a do mesmo modo, mas mais,
Por tu me escolheres para te ter e te amar,
Os meus olhos fitaram-na mais demoradamente
Sobre todas as cousas.
Não me arrependo do que fui outrora
Porque ainda o sou.
Só me arrependo de outrora te não ter amado.

( Alberto Caeiro/ Fernando Pessoa)

quarta-feira, 28 de julho de 2010

Ao braço do mesmo menino Jesus quando apareceu.



O todo sem parte não é todo,
A parte sem o todo não é parte,
Mas se a parte o faz todo, sendo parte,
Não se diga que é parte, sendo todo

Em todo sacramento está Deus todo,
E todo assiste inteiro em qualquer parte,
E feito em partes todo em toda parte,
Em qualquer parte sempre fica todo.

O braço de Jesus não seja parte,
Pois que feito Jesus em partes todo,
Assiste cada parte em sua parte.

Não se sabendo parte deste todo,
Um braço que lhe acharam, sendo parte,
Nos disse as partes todas deste todo.

(Grégorio de Matos)

terça-feira, 22 de junho de 2010


SOLITÁRIO


Como um fantasma que se refugia

Na solidão da natureza morta,

Por trás dos ermos túmulos, um dia,

Eu fui refugiar-me à tua porta!


Fazia frio e o frio que fazia

Não era esse que a carne nos contorta...

Cortava assim como em carniçaria

O aço das facas incisivas corta!


Mas tu não vieste ver minha Desgraça!

E eu saí, como quem tudo repele, --

Velho caixão a carregar destroços --


Levando apenas na tumba carcaça

O pergaminho singular da pele

E o chocalho fatídico dos ossos!


domingo, 30 de maio de 2010




Quero


Quero que todos os dias do ano
todos os dias da vida
de meia em meia hora
de 5 em 5 minutos
me digas: Eu te amo.
Ouvindo-te dizer: Eu te amo,
creio, no momento, que sou amado.
No momento anterior
e no seguinte,como sabê-lo?
Quero que me repitas até a exaustão
que me amas que me amas que me amas.
Do contrário evapora-se a amação
pois ao não dizer: Eu te amo,desmentes
apagas teu amor por mim.
Exijo de ti o perene comunicado.
Não exijo senão isto,isto sempre, isto cada vez mais.
Quero ser amado por e em tua palavra
nem sei de outra maneira a não ser esta
de reconhecer o dom amoroso,a perfeita maneira de saber-se amado:
amor na raiz da palavra e na sua emissão,amor
saltando da língua nacional,amor feito som vibração espacial.
No momento em que não me dizes:Eu te amo,
inexoravelmente sei que deixaste de amar-me,
que nunca me amastes antes.Se não me disseres urgente repetido
Eu te amoamoamoamoamo,
verdade fulminante que acabas de desentranhar,
eu me precipito no caos,essa coleção de objetos de não-amor.
Carlos Drummond de Andrade

quinta-feira, 27 de maio de 2010


Uma manhã para você

Quando você pensar
Que nada mais existe
Entre um lacônico horizonte
E um infinito céu de fim de tarde,
E buscar respostas para tantas indagações
Sem saber
Que sob sua janela
No gramado do jardim
Há tantas ervas daninha
Que queriam ser flores
E você sonolenta
Numa manhã de sábado
Sente-se muito mais...
Quando a chuva canta na calha do telhado.

Júlio César Costa (meu poeta favorito)