quarta-feira, 28 de julho de 2010

Ao braço do mesmo menino Jesus quando apareceu.



O todo sem parte não é todo,
A parte sem o todo não é parte,
Mas se a parte o faz todo, sendo parte,
Não se diga que é parte, sendo todo

Em todo sacramento está Deus todo,
E todo assiste inteiro em qualquer parte,
E feito em partes todo em toda parte,
Em qualquer parte sempre fica todo.

O braço de Jesus não seja parte,
Pois que feito Jesus em partes todo,
Assiste cada parte em sua parte.

Não se sabendo parte deste todo,
Um braço que lhe acharam, sendo parte,
Nos disse as partes todas deste todo.

(Grégorio de Matos)

terça-feira, 22 de junho de 2010


SOLITÁRIO


Como um fantasma que se refugia

Na solidão da natureza morta,

Por trás dos ermos túmulos, um dia,

Eu fui refugiar-me à tua porta!


Fazia frio e o frio que fazia

Não era esse que a carne nos contorta...

Cortava assim como em carniçaria

O aço das facas incisivas corta!


Mas tu não vieste ver minha Desgraça!

E eu saí, como quem tudo repele, --

Velho caixão a carregar destroços --


Levando apenas na tumba carcaça

O pergaminho singular da pele

E o chocalho fatídico dos ossos!


domingo, 30 de maio de 2010




Quero


Quero que todos os dias do ano
todos os dias da vida
de meia em meia hora
de 5 em 5 minutos
me digas: Eu te amo.
Ouvindo-te dizer: Eu te amo,
creio, no momento, que sou amado.
No momento anterior
e no seguinte,como sabê-lo?
Quero que me repitas até a exaustão
que me amas que me amas que me amas.
Do contrário evapora-se a amação
pois ao não dizer: Eu te amo,desmentes
apagas teu amor por mim.
Exijo de ti o perene comunicado.
Não exijo senão isto,isto sempre, isto cada vez mais.
Quero ser amado por e em tua palavra
nem sei de outra maneira a não ser esta
de reconhecer o dom amoroso,a perfeita maneira de saber-se amado:
amor na raiz da palavra e na sua emissão,amor
saltando da língua nacional,amor feito som vibração espacial.
No momento em que não me dizes:Eu te amo,
inexoravelmente sei que deixaste de amar-me,
que nunca me amastes antes.Se não me disseres urgente repetido
Eu te amoamoamoamoamo,
verdade fulminante que acabas de desentranhar,
eu me precipito no caos,essa coleção de objetos de não-amor.
Carlos Drummond de Andrade

quinta-feira, 27 de maio de 2010


Uma manhã para você

Quando você pensar
Que nada mais existe
Entre um lacônico horizonte
E um infinito céu de fim de tarde,
E buscar respostas para tantas indagações
Sem saber
Que sob sua janela
No gramado do jardim
Há tantas ervas daninha
Que queriam ser flores
E você sonolenta
Numa manhã de sábado
Sente-se muito mais...
Quando a chuva canta na calha do telhado.

Júlio César Costa (meu poeta favorito)

segunda-feira, 17 de maio de 2010


Aviso da Lua que Menstrua


Moço, cuidado com ela!

Há que se ter cautela com esta gente que menstrua...

Imagine uma cachoeira às avessas:

cada ato que faz, o corpo confessa.

Cuidado, moço às vezes parece erva,

parece hera cuidado com essa gente que gera

essa gente que se metamorfoseia

metade legível, metade sereia

Barriga cresce, explode humanidade

se ainda volta pro lugar que é o mesmo lugar

mas é outro lugar, aí é que está:

cada palavra dita, antes de dizer, homem, reflita...

Sua boca maldita não sabe que cada palavra é ingrediente

que vai cair no mesmo planeta panela.

Cuidado com cada letra que manda pra ela!

Tá acostumada a viver por dentro,

transforma fato em elementoa tudo refoga, ferve, frita

ainda sangra tudo no próximo mês.

Cuidado moço, quando cê pensa que escapou é que chegou a sua vez!

Porque sou muito sua amiga é que tô falando na "vera"

conheço cada uma, além de ser uma delas.

Você que saiu da fresta dela delicada força quando voltar a ela.

Não vá sem ser convidadoou sem os devidos cortejos...

Às vezes pela ponte de um beijojá se alcança a

"cidade secreta"a Atlântida perdida.

Outras vezes várias metidas e mais se afasta dela.

Cuidado, moço, por você ter uma cobra entre as pernas

cai na condição de ser displicente diante da própria serpente.

Ela é uma cobra de avental.Não despreze a meditação doméstica.

É da poeira do cotidiano que a mulher extrai filosofia

cozinhando, costurando e você chega com a mão no bolso

julgando a arte do almoço: Eca!...Você que não sabe onde está sua cueca?

Ah, meu cão desejado tão preocupado em rosnar, ladrar e latir

então esquece de morder devagar esquece de saber curtir, dividir.

E aí quando quer agredir chama de vaca e galinha.

São duas dignas vizinhas do mundo daqui!

O que você tem pra falar de vaca?

O que você tem eu vou dizer e não se queixe:VACA é sua mãe.

De leite.

Vaca e galinha...ora, não ofende. Enaltece, elogia:

comparando rainha com rainha óvulo, ovo e leite

pensando que está agredindo que tá falando palavrão imundo.Tá, não, homem.

Tá citando o princípio do mundo!


domingo, 25 de abril de 2010

Trovas inéditas de Benedito Cunha Melo



À Sempre-Viva, em verdade,
Não deu perfume o Senhor
,Para não ser a vaidade
Sempre viva numa flor.


Quando eu morrer, trovadores,
Se me tendes, como irmão,
Enchei, enchei, como flores,
De trovas o meu caixão.



Senhor: tranqüilas e mansas,
As últimas tardes minhas,
Vendo, no pátio, crianças,
Vendo, no azul, andorinhas...


A vida de São Francisco
Foi um poema à pobreza:
Trocou os bens pelo Bem,
Sua única riqueza.





Venho de um mundo distante,
Venho de um mundo acabado,
Onde deixei, soluçante,
O último sonho enterrado.


Fez lembrar-me a voz do grilo,
Noite a dentro; aqui, ali,
A paz de um mundo tranqüilo,
Em que já cri... cri... cri... cri...

sábado, 16 de janeiro de 2010



POEMA ABANDONADO

Um poema abandonado
Numa página qualquer
Nunca d´ antes então lembrado
Como um velho bem-me-quer


Um poema enclausurado
Em sua linha diacrónica
Tanto tempo ali parado
Sua cegueira já é crônica


Rasgue o lacre grite o verso
Que o poema transcendeu
Esse sonho é tão perverso


Foi você quem concebeu
Malfadado beijo inverso
O poema aconteceu.

Julio Costa

sexta-feira, 8 de janeiro de 2010


XIII


"Ora (direis) ouvir estrelas! Certo
Perdeste o senso!" E eu vos direi, no entanto,
Que, para ouvi-las, muita vez desperto
E abro as janelas, pálido de espanto...

E conversamos toda a noite, enquanto

A via láctea, como um pálio aberto,
Cintila. E, ao vir do sol, saudoso e em pranto,
Inda as procuro pelo céu deserto.

Direis agora: "Tresloucado amigo!
Que conversas com elas? Que sentido
Tem o que dizem, quando estão contigo?"

E eu vos direi: "Amai para entendê-las!
Pois só quem ama pode ter ouvido
Capaz de ouvir e de entender estrelas."


Olavo Bilac

quarta-feira, 6 de janeiro de 2010


Soneto de Fidelidade

De tudo ao meu amor serei atento

Antes, e com tal zelo, e sempre, e tanto

Que mesmo em face do maior encanto

Dele se encante mais meu pensamento.

Quero vivê-lo em cada vão momento

E em seu louvor hei de espalhar meu canto

E rir meu riso e derramar meu pranto

Ao seu pesar ou seu contentamento

E assim, quando mais tarde me procure

Quem sabe a morte, angústia de quem vive

Quem sabe a solidão, fim de quem ama

Eu possa me dizer do amor (que tive):

Que não seja imortal, posto que é chama

Mas que seja infinito enquanto dure.